CD BOSSA 65, by Tarik de Souza – AMAJAZZ – BR

Tárik de Souza mostra a permanência da bossa nova, que se renova aos 65 anos no disco mais recente de Antonio Adolfo

A despeito de perder mais um ícone, Astrud Gilberto, 83, em 5 de junho passado, a bossa nova – aos 65 anos da estreia, com João Gilberto em Chega de Saudade, em 1958 – continua on. Não só porque a estrelinha pop americana Billie Eilish, de pouco mais de 20 anos (com cara e atitude de 16, 17), veio ao Brasil cantar no Lollapalooza, em março passado, sua “Billie bossa nova”. E se declarou em entrevista a Mari Teixeira, no Globo: “Eu amo esse som. E essa música foi uma ode à bossa nova. Mas quase não nomeei daquele jeito, porque não queria reivindicar como se fosse para mim. Sou só uma fã”, exagerou. A canadense Alessia Cara, 26, postou um vídeo dublando Saudade fez um Samba, na voz de João Gilberto, ídolo do duo folk pop norueguês Kings of Convenience, que cultiva até mesmo as broncas do cantor, pedindo silêncio a plateia para sua arte altamente lapidada. Mesmo no Brasil, onde como dizia Ivan Lessa, “de 15 em 15 anos as pessoas esquecem o que aconteceu nos 15 anos anteriores”, o rapper Marcelo D2 sampleou o bossanovista Luis Bonfá, no clássico À Procura da Batida Perfeita. E a soberana funk Anitta, foi além de cantar Garota de Ipanema, vestida de Carmem Miranda, no Rock in Rio em Lisboa, em 2018. Três anos depois, em Girl from Rio, linkou a chique Ipanema (“lago fedorento”, em tupi guarani) com o Piscinão de Ramos, num trajeto bossa/funk difícil de planejar pelo Waze.

Qual o segredo da permanência da bossa, a despeito da devastadora antropofagia de sua terra natal? O pianista, arranjador e produtor Antonio Adolfo dá a resposta em Bossa 65 – Celebrating Carlos Lyra and Roberto Menescal (AAM Music), onde aborda com diversas e revigorantes concepções, a obra de dois pilares da composição bossa nova. Adolfo não é turista no tema: foi um dos luminares da era piano-baixo-bateria da bossa com seu Trio 3D, dos discos Tema 3D (1964, aos 17 anos) e O Trio 3D Convida (1965, com Paulo Moura, Maciel, Raul de Souza, Meirelles e arranjos de Eumir Deodato). Participou do lendário musical Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes. Adiante, tentou transformar seu grupo num novo Brasil 66, linha Sérgio Mendes, e convocou a voz iniciante de Beth Carvalho, e a guitarra de Helio Delmiro. Um dos principais fornecedores de hits do efêmero movimento toada moderna, que agregou baião & bossa (Sá Marina, com Tibério Gaspar, estourou na voz de Wilson Simonal), ele foi decisivo na insurreição do soul Brasil. Sua BR-3, em parceria com o mesmo Gaspar, na voz tonitruante e requebros à James Brown de Toni Tornado, tomou de assalto o Festival Internacional da Canção, de 1970. Pioneiro do disco independente com Feito em Casa, no selo Artezanal, vendido de loja em loja, em 1977, ressignificou repertórios fundadores como os de Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.

Alternando-se entre Estados Unidos e Brasil nos últimos tempos, restabeleceu uma ponte com o jazz americano pós bossa nova, com releituras de Wayne Shorter a Tom Jobim. Foi indicado diversas vezes a prêmios no Grammy Latino, entre eles, em 2015, pelo autoral Tema. Já Hybrido – From Rio to Wayner Shorter, entre 2017 e 2018, ganhou indicações tanto para o Grammy Latino como para o Grammy internacional. Seu Jobim Forever ficou quatro semanas no primeiro lugar do ranking da publicação Jazzweek e também no topo do RMR (Roots Music Report). No novo disco, ele avança bossa adentro, pondo a prova a amplitude estética de dois de seus maiores compositores, além de Jobim. Lyra, “um dos melhores melodistas da música brasileira de todos os tempos”, elogiou Adolfo na contracapa. E Menescal, o balanço e a harmonia trabalhada em desalinho com a tradição (“Criou algumas das mais importantes gemas da bossa”, escreveu Adolfo). São cinco composições de cada, um com os respectivos parceiros, submetidas a arrojados arranjos de Adolfo, ao piano, liderando um elenco de estirpe: Lula Galvão (guitarra), Jorge Helder (baixo), Rafael Barata (bateria, percussão, com Dada Costa), Jessé Sadoc (flugelhorn e trumpete), Danilo Sinna (sax alto), Marcelo Martins (saxes, flauta) e Rafael Rocha (trombone).

Nas escolhas no repertório de Lyra (todas parcerias com Vinicius), Adolfo privilegiou temas do musical Pobre Menina Rica, do qual participou. Do incandescente afrosamba Maria Moita, desenvolvido em várias frentes, de forma a parecer duas músicas tocadas ao mesmo tempo, ao desafiador Sabe Você, com uma base estruturada no trio de bossa, e o embalado Samba do Carioca, onde o groove bossa jazz come solto. Marcha rancho também é bossa, comprova a histórica Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de 1963, que antevia as trevas que cairiam sobre o país no ano seguinte (“acabou nosso carnaval/ ninguém ouve cantar canções/ e nos corações/ saudades e cinzas foi o que restou”). A letra não é cantada, óbvio, já que se trata de disco instrumental. Mas, de tão sedutora, a remansosa Coisa Mais Linda (da fornada inicial dos parceiros Lira & Vina, de 1960) ganha um cantarolar de Adolfo, em levada mais lenta. A espraiada canção ainda virou título de filme sobre a bossa nova, dirigido pelo cineasta Paulo Thiago, e conduzido exatamente pela dupla Lyra e Menescal, em 2005.

Gravado no mesmo ano de seu lançamento, em 1961, por João Gilberto, Maysa, Paulinho Nogueira, Pery Ribeiro, Walter Wanderley e Sonia Delfino, O Barquinho, se transformou no maior sucesso da dupla formada por Roberto Menescal e o letrista e jornalista Ronaldo Bôscoli (produtor de índole marqueteira, que capturou a expressão “bossa nova” para rotular o movimento), autores das três faixas seguintes. Na releitura, Adolfo cita a célebre abertura rendilhada do arranjo de Luis Eça para a gravação da música pelo Tamba Trio, e divaga por outras veredas abertas a solos de sax, mediação de guitarra e percussão no compasso da bossa. O desembarque de uma pequena, mas estrondosa bateria de escola de samba desautoriza minimalismos da bossa, na esfuziante exaltação à cidade, Rio. A canção dos versos pré-concretos, “é sal/ é céu/ é sul” se desenvolve com muita ginga de sopros em naipe, e um refinado solo de baixo. A romântica Tetê é relatada por um solo de trombone, contraposto por piano e guitarra lânguida infiltrada. A descritiva Nós e o Mar tem um sax panorâmico evoluindo em escalas e um piano gotejando notas densas.

Ponto fora da curva da obra de Menescal, pós-bossa, sua parceria com Chico Buarque para a trilha e que levou o nome do filme do cineasta Cacá Diegues Bye Bye Brasil, de 1979 angustia-se numa espiral, que evolui e reflui sob ritmos agalopadas e sopros, que se organizam em dissonâncias. É uma das faixas mais abrasivas do disco, atestado de quantas portas a bossa abriu para o futuro. Ele chegou, e não deserdou o movimento, de estupendos músicos – entre eles, Lyra, Menescal e Adolfo – que sacudiu as estruturas da MPB.